Harriett.


Para
Luzia Peltier que soube dela

“No fundo do peito, esse fruto apodrecendo a cada dentada.”
(Macalé & Duda Machado: Hotel das Estrelas)

Chamava-se Harriett, mas não era loura. As pessoas sempre esperavam dela coisas como longas tranças, olhos azuis e voz mansa. Espantavam-se com os ombros largos, a cabeleira meio áspera, o rosto marcado e duro, os olhos escurecidos. Harriett não brincava com os outros quando a gente era criança. Harriett ficava sozinha o tempo todo. Mesmo assim, as pessoas gostavam dela.
Quase todo mundo foi na estação quando eles foram embora para a capital. Ela estava debruçada na janela, com os cabelos ásperos em torno das maçãs salientes. Eu fiquei olhando para Harriett sem conseguir imaginá-la no meio dos edifícios e dos automóveis. Acho que senti pena — e acho que ela sentiu que eu sentia pena dela, porque de repente fez uma coisa completamente inesperada. Harriett desceu do trem e me deu um beijo no rosto. Um beijo duro e seco. Qualquer coisa como uma vergonha de gostar.
Essa foi a primeira vez que eu vi os pés dela. Estavam descalços e um pouco sujos. Os pés dela eram os pés que a gente esperava de uma Harriett. Pequenos e brancos, de unhas azuladas como de criança. Eu queria muito ficar olhando para seus pés porque achei que só tinha descoberto Harriett na hora dela ir embora. Mas o trem se foi. E ela não olhou pela janela.
Um tempo depois a gente viu uma fotografia dela numa revista, com um vestido de baile. Harriett era manequim na capital. Todo mundo falou e comprou a revista. Quase todos os dias a gente via a foto dela nos jornais. Harriett era famosa. A cidade adorava ela, mas ela nunca escreveu uma carta para ninguém.
Muito tempo depois, eu a vi outra vez. Eu estava trabalhando num jornal e tinha que fazer uma entrevista com ela. Harriett estava sozinha e não ficou feliz em me ver. Continuava grande e consumida e tinha nos olhos uma sombra cheia de dor. Fumava. Falei da cidade, das pessoas, das ruas — mas ela pareceu não lembrar. Contou-me de seus filmes, seus desfiles, suas viagens — contou tudo com uma voz lenta e rouca. Depois, sem que eu entendesse por que, mostrou-me uma coisa que ela tinha escrito. Uma coisa triste parecida com uma carta. Tinha um pedaço que nunca mais consegui esquecer, e que falava assim:

sabe que o meu gostar por você chegou a ser amor pois se eu me comovia vendo você pois se eu acordava no meio da noite só pra ver você dormindo meu deus como você me doía vezen quando eu vou ficar esperando você numa tarde cinzenta de inverno bem no meio duma praça então os meus braços não vão ser suficientes para abraçar você e a minha voz vai querer dizer tanta mas tanta coisa que eu vou ficar calada um tempo enorme só olhando você sem dizer nada só olhando olhando e pensando meu deus ah meu deus como você me dói vezenquando

Quando terminei de ler, tinha vontade de chorar e fiquei uma porção de tempo olhando para os pés dela. E pensei que ela parecia ter escrito aquilo com seus pés de criança, não com as mãos ossudas. Eu disse para Harriett que era lindo, mas ela me olhou com aquela cara dura que a gente não esperava de uma Harriett e disse que não adiantava nada ser lindo. Tive vontade de fazer alguma coisa por ela. Mas eu só tinha uma vaga numa pensão ordinária e um número de telefone sempre estragado. Eu não podia fazer nada. E se pudesse, ela também não deixaria. Fui embora com a impressão de que ela queria dizer alguma coisa.
Três dias depois a gente soube que ela tinha tomado um monte de comprimidos para dormir, cortou os pulsos e enfiou a cabeça no forno do fogão a gás. Foi muita gente no enterro e ficaram inventando histórias sujas e tristes. Mas ninguém soube. Ninguém soube nunca dos pés de Harriett. Só eu. Um desses invernos eu vou encontrar com ela no meio duma praça cinzenta e vou ficar uma porção de tempo sem dizer nada só olhando e pensando: que pena — que pena, Harriett, você não ter sido loura. Vezenquando, pelo menos.

Cavalo branco no escuro.


Lá fora alguém caminha no escuro. Posso ouvir nitidamente seus passos esmagando devagar o cascalho fino do jardim. Como se tomasse cuidado para não me acordar. Como se eu dormisse. Às vezes se detém, ejulgo ouvir sua respiração espessa de animal atravessando as vidraças abaixadas para chocar-se contra as paredes, e depois tombar sobre mim sufocando minha própria respiração. É então que sinto medo. Deixo de sentir o contato gorduroso dos lençóis contra minha pele, e fico todo concentrado nessa coisa: o medo. Não dele, nem de seus passos, nem de que possa de repente espatifar as vidraças para entrar no quarto — também não tenho medo de sua possível violência, de suas prováveis garras. O que me assusta é justamente essa respiração de animal. Essa coisa grossa, azeda, estranhamente flácida e morna, da mesma consistência dos lençóis sujos.
Para evitar esse medo que sufoca o cheiro dos lençóis e de meu próprio corpo, penso no jardim. E quando, por segundos, o cascalho pára de estalar sob seus pés, penso que é porque se aproximou do canteiro de margaridas. E recomponho na memória essas margaridas amontoadas no canteiro de tijolos, com seus talos verdes e rígidos, suas longas pétalas brancas e o miolo amarelo, granuloso, sem nenhum cheiro. Quando o medo é maior, penso nas hortênsias. Eram azuis, as hortênsias. Ficavam distantes da janela, próximas do poço e da parreira, quase no quintal. Eram azuis e sólidas, as hortênsias. Também não tinham cheiro, como as margaridas, nem gosto. Uma vez experimentei mastigar algumas pétalas, e tive a sensação exata de ter entre os dentes algo tão fino e frágil como uma asa de borboleta. Eram azuis e sólidas, e às vezes eu cobria os cabelos com elas, prendendo-as atrás das orelhas para depois olhar-me no espelho grande do corredor e achar-me parecido com uma daquelas gravuras japonesas do livro de História de minha mãe — as gueixas, as hortênsias. Essas eram elas.
Quando o medo é quase absurdo, e principalmente quando o cheiro daquela respiração ameaça tornar-se insuportável, recorro aos jasmins. Só então recorro aos jasmins. Deixo-os por último, quando estou à beira de dar um grito ou fazer algum movimento brusco para libertar-me — mesmo sabendo que estou demasiado enfraquecido para dar gritos ou fazer gestos bruscos. Talvez a impossibilidade de fazer essas coisas é que me obrigue a recorrer aos jasmins. Porque eu sempre soube que eles eram o último recurso, última porta, última chave. Eles, os jasmins: última varanda antes da fronteira que me separa do que não conheço. Vejo-os crescer nas sombras para se abrirem em corolas fartas e pálidas: eu me debruço na janela, eu sou muito jovem, eu acredito, eu sou quase um menino que se debruça na janela e olha para esses jasmins pálidos e frios e entontece aos poucos com o perfume doce e olha para a lua, porque havia uma lua quase sempre cheia naquele tempo, e pergunta em espanto o que vai ser dele, que durezas ou doçuras lhe trará essa coisa que ainda não tocou com suas próprias mãos e que chamam de vida, eles, os outros, os que dormem além da porta sem saberem desse menino e desse espanto e dessa lua e sobretudo desses jasmins gelados no jardim. Esse quase menino que sou eu, esse menino suspeita e sente que quase pode viajar na esteira do perfume dos jasmins que voa por cima do muro de tijolos, ultrapassa a sarjeta para misturar-se à terra vermelha da rua e perder-se nas unhas-de-gato do terreno ao lado e no valo da calçada oposta e na casa branca de madeira sobre a elevação de terra — esse menino não chora e não diz nada. Tem olhos enormes para o que ainda não chegou e talvez não chegue nunca.
Tudo isso é doloroso para mim, porque sei que o jardim não é esse, sei mesmo que talvez nem exista um jardim, sei que os jasmins se perderam, e recorro à casa, e penetro cada um de seus aposentos, e desvendo a casa, e recorro à rua, ao arco branco no fim da rua, e à cidade de ruazinhas estreitas e tortas e vizinhos na janela e estradas de terra batida e poeirenta. Mas sei: sempre sei que tudo isso não está mais do lado de fora: sei que já não bastaria abrir a janela: sei que não bastaria a janela. Como se minhas unhas crescessem e eu as cravasse no meu próprio peito. Digo para mim mesmo que não é preciso assassinar o que já está morto, mas enquanto dura a respiração dele, preciso continuar enterrando as unhas devagar na carne, afastando músculos e veias e ossos, como se escavasse a terra em busca de uma semente. Preciso revirar o punhal com dedos seguros, até conseguir extrair algumas gotas de sangue da carne morta. Não consigo. Sei que não consigo no momento em que a respiração cessa e os passos voltam a esmagar o cascalho.
De vez em quando um movimento mais brusco faz com que brote um ruído de folhagens esmagadas. Imagino-o pisando nas margaridas, rasgando as hortênsias, esmagando os jasmins entre os dentes escuros, nas mãos de dedos curtos e juntas grossas, sob as patas de cascos partidos, o corpo áspero de pêlos espojando-se sobre os verdes que minha mãe esquecia de regar e que cresciam apenas por teimosia. A teimosia e a chuva enredando seus membros sobre o muro, sob a terra. Sei que o sangue já não corre: sei que nenhuma semente veio à tona: sei que de nada adianta espreitar dia após dia o seu crescimento, porque não crescerão: sei que é inútil afastar as pedras e os parasitas, tentando distinguir uma pequenina folha verde. Sei que as chuvas não caem mais como antigamente. Então me encolho entre os lençóis e fico ouvindo o cascalho rangendo sob seus pés.
Quando o ruído cessa e penso que ele se afastou por alguns momentos, fixo os olhos no teto ou na parede e tento distinguir apenas cores e formas. Mas não sei mais se o que vejo é o que vejo ou apenas o que penso ver. Dizem que quando se fica muito tempo sem comer acontecem alucinações, da mesma forma como quando se toma drogas. Não sei se são alucinações causadas pela fome, e já não tomo nenhuma droga desde que resolvi deixar que tudo secasse para que viesse à tona apenas o que quisesse vir, sem que eu o chamasse. Seja como for, eu o via. Não esse, o que caminha no escuro, porque não sei de seu corpo nem de sua face, mas um outro, talvez o mesmo, não sei.
Ele estava na parede. A parede é azul. No começo, foi só o que vi: a parede azul. Depois notei que o azul se movia e aquilo que eu julgava fazer parte da matéria da parede destacava-se e ganhava a forma de um corpo, um corpo vestido de azul. Esse corpo vestido de azul destacou-se da parede e veio sentar-se a meu lado, na beira da cama. Foi quando colocou uma das mãos na minha testa que tive vontade de sorrir para ele. Fazia muito tempo que eu não tinha vontade de sorrir para nada nem para ninguém, então era extraordinário que ele conseguisse perturbar assim os cantos de meus lábios, fazendo com que eles se movimentassem duramente, numa tentativa de se abrirem. Mas não sorri. Sabia de meus dentes sujos, sabia da escuridão de minha boca. E não queria assustá-lo, sobretudo isso: não queria assustá-lo porque poderia retirar a mão de minha testa e levantar-se daquele lugar. Há muito tempo ninguém me tocava. Acho que ele sentiu o meu sorriso preso e a minha confusão, porque perguntou devagar alguma coisa, exatamente como se tentasse quebrar um momento de embaraço. Não sei que coisa foi, também não sei o que respondi. Sei que depois de ouvir minha resposta, afastou-se abanando a cabeça e dizendo que não era possível, que não ia dar certo, que ele sabia que não tinha jeito. Abriu os braços e voltou a confundir-se com a parede.
Foi depois disso que começou essa coisa dos passos, a respiração, o medo, as margaridas, as hortênsias, os jasmins. Ou antes, não lembro. Você é bonito, quis dizer a ele. Mas não foi possível. Foi tudo demasiado rápido. Agora já é muito tarde e eu simplesmente me recuso. Quando resolvi fugir daquelas coisas torpes lá de fora não pensei que fosse tão fácil: na verdade foi tudo muito natural, como se um dia isso tivesse mesmo que acontecer, e exatamente dessa forma. Não precisei fazer esforço algum. Só deitar e esperar. A princípio ainda classificava lembranças e memórias, tinha consciência de um antes, um durante, um depois, de um real e um irreal, um tangível e um intangível, um humano e um divino: separava minha memória e meus conhecimentos em partes cuidadosamente distintas. Depois que ele começou a rondar minha janela, ou antes, não sei, tudo se confundiu num só bloco, e fiquei assim: esta massa compacta toda à superfície de si mesma. Não lembro de ninguém assim tão à flor de si mesmo: raiz, caule, folhas e frutos. Talvez seja bonita uma coisa assim, uma pessoa assim. Ou horrível, não sei. Talvez eu esteja sendo gerado, também não sei. Sei que falta pouco. Eu queria que não fosse assim, que não tivesse sido assim. Mas não consegui evitar. A semente recusava-se a vir à tona, eu nem sempre tinha tempo ou vontade de regá-la, e não chovia mais — foi isso o que aconteceu.
Pressinto que vai ser agora. Tenho mesmo certeza de que vai ser agora. Os passos se aproximam. Faço um grande esforço e consigo aprumar um pouco meu corpo sobre a cama. O cascalho estala. Distendo meus braços e pernas, e nesse movimento há como uma dor brotando de um fundo muito escondido. A janela começa a ceder. Fixo a atenção na minha própria cabeça, até deixá-la ereta. Ouço o barulho dos vidros caindo sobre o chão. Todos esses movimentos fazem com que um cheiro desagradável de coisa apodrecida se desprenda dos lençóis e de meu corpo e quando sinto as garras tocando-me devagar nos dedos dos pés já não sei distinguir se esse cheiro que violenta minhas narinas vem dos lençóis ou de meu corpo ou de sua respiração ofegante pesada viscosa grossa repulsiva e morna subindo por minhas pernas até atingir meus joelhos misturada a uma baba viscosa e não sinto nojo apenas uma vaga curiosidade e pergunto a mim mesmo se tudo isso pertencerá mesmo a um animal ou a um homem ou a qualquer outra coisa e passa-me pela cabeça um rápido pensamento assim: não será a trepadeira que caía da janela? e digo que não e digo que sim e é quando sinto uma coisa escura como uma boca abater-se sobre meu sexo que começo a pensar nas margaridas e digo assim agora que a tua linha paralela à minha vai ficar ainda mais distante não vou ter ninguém mais pra me dar uma margarida de repente pra não dizer nada pra me encontrar no fim da rua mas tudo isso está morto então volto às hortênsias e vejo as encostas cobertas de borboletas azuis amarelas cor-de-rosa no meio do trigo da serra no sul e quase esqueço de meus dentes sujos para mostrá-los num sorriso mas esse visgo mas essa gosma essa náusea avança por meu peito até quase minha boca e olho para os jasmins abertos sob um céu de lua cheia e vejo um menino espantado numa janela aberta um menino nu e espantado da parede azul ele me sorri e estende os braços como se me esperasse você é tão bonito eu tenho vontade de dizer esse perfume me entontece e sinto que vomito e que sua língua preta suga a matéria espessa de meu vômito mas é muito tarde ouço o galope de um cavalo que pressinto branco varando o escuro em busca da madrugada e vibro inteiro como se tivesse sangue como se a semente brotasse você é tão bonito tenho vontade de dizer mas há um poço tapando a minha boca e então toco o rendilhado de um vôo em direção à casa oposta em direção ao arco branco no fim da rua e não digo nada eu não digo nada eu só quero olhar de olhos abertos para esse azul engastado na parede e pensar como você é bonito mas duas garras atingem meus olhos e enquanto grito de dor e de prazer as minhas órbitas perfuradas libertam estrelas marinhas e medusas e sereias e algas verdes que oscilam lentamente empurradas pelas ondas para a areia branca onde um dia meus pés deixaram lagos tão breves que não houve tempo da lua refletir-se neles.

Iniciação.


I

Foi numa dessas manhãs sem sol que percebi o quanto já estava dentro do que não suspeitava. E a tal ponto que tive a certeza súbita que não conseguiria mais sair. Não sabia até que ponto isso seria bom ou mau — mas de qualquer forma não conseguia definir o que se fez quando comecei a perceber as lembranças espatifadas pelo quarto. Não que houvesse fotografias ou qualquer coisa de muito concreto — certamente havia o concreto em algumas roupas, uma escova de dentes, alguns discos, um livro: as miudezas se amontoavam pelos cantos. Mas o que marcava e pesava mais era o intangível.
Lembro que naquela manhã abri os olhos de repente para um teto claro e minha mão tocou um espaço vazio a meu lado sobre a cama, e não encontrando procurou um cigarro no maço sobre a mesa e virou o despertador de frente para a parede e depois buscou um fósforo e uma chama e fumei fumei fumei: os olhos fixos naquele teto claro. Chovia e os jornais alardeavam enchentes. Os carros eram carregados pelas águas, os ônibus caíam das pontes e nas praias o mar explodia alto respingando pessoas amedrontadas. A minha mão direita conduzia espaçadamente um cigarro até minha boca: minha boca sugava uma fumaça áspera para dentro dos pulmões escurecidos: meus pulmões escurecidos lançavam pela boca e pelas narinas um fio de fumaça em direção ao teto claro onde meus olhos permaneciam fixos. E minha mão esquerda tocava uma ausência sobre a cama.
Tudo isso me perturbava porque eu pensara até então que, de certa forma, toda minha evolução conduzira lentamente a uma espécie de não-precisar-de-ninguém. Até então aceitara todas as ausências e dizia muitas vezes para os outros que me sentia um pouco como um álbum de retratos. Carregava centenas de fotografias amarelecidas em páginas que folheava detidamente durante a insônia e dentro dos ônibus olhando pelas janelas e nos elevadores de edifícios altos e em todos os lugares onde de repente ficava sozinho comigo mesmo. Virava as páginas lentamente, há muito tempo antes, e não me surpreendia nem me atemorizava pensar que muito tempo depois estaria da mesma forma de mãos dadas com um outro eu amortecido — da mesma forma — revendo antigas fotografias. Mas o que me doía, agora, era um passado próximo.
Não conseguia compreender como conseguira penetrar naquilo sem ter consciência e sem o menor policiamento: eu, que confiava nos meus processos, e que dizia sempre saber de tudo quanto fazia ou dizia. A vida era lenta e eu podia comandá-la. Essa crença fácil tinha me alimentado até o momento em que, deitado ali, no meio da manhã sem sol, olhos fixos no teto claro, suportava um cigarro na mão direita e uma ausência na mão esquerda. Seria sem sentido chorar, então chorei enquanto a chuva caía porque estava tão sozinho que o melhor a ser feito era qualquer coisa sem sentido. Durante algum tempo fiz coisas antigas como chorar e sentir saudade da maneira mais humana possível: fiz coisas antigas e humanas como se elas me solucionassem. Não solucionaram. Então fui penetrando de leve numa região esverdeada em direção a qualquer coisa como uma lembrança depois da qual não haveria depois. Era talvez uma coisa tão antiga e tão humana quanto qualquer outra, mas não tentei defini-la. Deixei que o verde se espalhasse e os olhos quase fechados e os ouvidos separassem do som dos pingos da chuva batendo sobre os telhados de zinco uma voz que crescia numa história contada devagar como se eu ainda fosse menino e ainda houvesse tias solteironas pelos corredores contando histórias em dias de chuva e sonhos fritos em açúcar e canela e manteiga.

II

Ele tinha medo porque não sabia onde se encontrava. Ainda não havíamos falado: eu estava sentado no meio do circo e, deitado sobre a plataforma, envolto em renda vermelha, ele me dizia devagar que estava perdido. Para tranqüilizá-lo, ou para tranqüilizar a mim mesmo, fui dizendo no mesmo ritmo que era talvez um templo dos tempos futuros, onde cada um faria o que bem entendesse.
Ave templo dos escolhidos — ele disse sorrindo. E eu sorri também, um sorriso idiota, como pedindo desculpas por não ter ousado dar o nome que ele dava. Ele sorriu novamente, desta vez como se compreendesse e avisasse que aqueles eram os últimos instantes antes da perdição. Tive medo de compreender, e acrescentei rapidamente que talvez estivéssemos sendo raptados por um disco voador: ele ficou sério. Sem sentir eu penetrava no mesmo e doce pânico. Procurei ver seu corpo, coberto por renda vermelha, naquele momento exato o importante era distinguir seu sexo, a idade, a cor dos cabelos, dos olhos, a conformação da boca, a consistência da pele, os ossos da bacia — naquele momento tentei percebê-lo concreto e absoluto, e se tivesse conseguido sei que a salvação teria começado no mesmo momento em que a perdição se armava, sem se interligarem num único caminho — como mais tarde aconteceu. Mas um grupo de pessoas colocou-se entre nós e eu o perdi de vista. Só depois de muito tempo é que se afastaram e consegui olhar para ele. Mas nada vi. A renda vermelha libertava apenas dois pés assexuados, anônimos, incógnitos, sozinhos. Esperei.
E não mais ouvi seu medo porque depois as luzes apagaram, nasceu uma claridade roxa dos cantos e, enquanto movimentos estremeciam os corpos deitados ao lado dele, suspeitei que o ritual começara: a missa ou a decolagem em direção a Alfa Centauro. A missa celebrando a loucura divina: o sumo sacerdote suspendendo um lindo sonho dourado em suas mãos pálidas. Alfa Centauro — a meta. Apertei as duas mãos contra a poltrona e tentei voltar às folhas amarelecidas de meu álbum. Ah como quis de repente estar outra vez debruçado na janela aberta para os jasmins da ruazinha estreita. Como quis de repente aquela crença antiga e aquele cavalo jovem galopando no meu corpo. Como quis os jasmins enquanto abria as portas para cruzar sete passagens tão amedrontado como se não me julgasse feito e consumado e consumido. Não tinha sequer uma memória quando ele começou a despir suas vestes vermelhas.

III

Não sei se alguém mais percebeu. De qualquer maneira, eu estava tão sozinho dentro daquilo que tudo que percebesse seria somente meu. O detalhe. Não aquelas centenas de pessoas nuas correndo pelas plataformas, nem o som estridente das guitarras elétricas, nem o vermelho das paredes ou o metal das cadeiras, a lona do teto, o todo, o tudo. Separei-o cuidadoso e voluntário dos outros. E vi.
A renda escorregou aos poucos revelando um corpo talvez masculino, o sexo oculto por um pequeno retalho preto. A conformação suave dos ombros, uma fragilidade inesperada no plexo liso equilibrado sobre uma bacia de ossos salientes como facas e pernas fortes nascendo e pés de longos dedos magros e pobres com suas unhas rentes, brancas, limpas. Depois escorregou o capuz e desvendou súbito um emaranhado de cabelos crespos civilizados por gestos bruscos que os afastavam para trás libertando uma testa lisa de enormes olhos claros desenhados e um sorriso de mil anos atrás da estrutura mansa de uma boca feita em dentes brancos e língua terna. Não consegui acompanhar seus movimentos descontrolados, até o momento em que comecei a perceber qualquer coisa como um adolescente habitando aquele corpo. Afundei num espanto pesado. E olhei. Durante muito tempo olhei sem ver o que via, com medo do terrível entrincheirado dentro do adolescente nu. Mas não gritei.
Aos poucos, um todo começou a se formar à sua volta. Aos poucos, ele começou a se tornar o centro daquele todo. Aos poucos, ele se desdobrou em faces e formas para cada um dos que o viam. E não eram muitos. Mas desses escolhidos ele escolheria o que ousasse para assassiná-lo pouco a pouco em dentadas estraçalhantes: o sangue jorraria de todas as veias abertas para regar uma semente plantada por seus gestos luzidios como o fio de uma navalha. Equilibrava-se em sua própria lâmina e morria em cada movimento, explodindo escuro e colorido no meio da plataforma. Aceitei.

IV

Depois de muito tempo, percebi que procurava sempre um ponto de onde pudesse ser visto por mim, e percebi que quando a luz violeta batia em seus olhos claros eles estavam fixos em mim, e quando havia luz sobre minha cabeça ele olhava e sorria e triturava palavras incompreensíveis entre os dentes brancos. E quando tudo se aproximava do fim ele assumiu ainda outras formas, como se me convidasse a escolher a que mais me convinha, sem saber que eu aceitaria qualquer forma e qualquer face, sem saber absolutamente nada de mim. Quando tudo terminava, ele morreu e explodiu mais vezes sobre a plataforma roxa à minha frente. Sem sentir, comecei a aplaudi-lo em pé e a sorrir-lhe como se houvesse um pacto entre nós, e a olhá-lo de maneira tão funda e tão oblíqua quanto a que ele me olhava. E de repente estávamos nós dois sozinhos dentro do circo.
Não houve necessidade de palavras. Avancei entre as cadeiras de metal, vencendo corredores vazios, aos poucos caminhando em direção a ele, que me esperava com sua túnica branca sobre o corpo molhado de suor. Estendi os braços em sua direção e depois de algum tempo as pontas de meus dedos tocaram as pontas de seus dedos e descargas elétricas e fluxos e raios e nervos se interpenetraram enlouquecidos até que minhas mãos conseguissem atingir seus ombros e suas mãos atingissem meus ombros e seu peito ficasse colado ao meu e seus cabelos roçassem com força contra meu rosto e seus olhos de imensas pupilas dilatadas se afastassem depois de um tempo que me pareceu interminável e se unissem à voz rouca para dizer alguma coisa que não consegui entender mas que soou como um aviso um perigo não entre não entre no definitivo mas eu não conseguia entender enquanto seus olhos fixos desprendiam raios e sua voz libertava avisos seculares medos de lugares desconhecidos eu já não conseguia voltar atrás havia rompido com todas as mitologias para penetrar num escasso ou amplo espaço de onde não sabia se sairia vivo ou morto ou renovado sentia ao mesmo tempo no contato das mãos e dos raios todos os jasmins das ruazinhas fechadas e fotografias antigas manhãs e a janela aberta mostrando uma brecha entre as nuvens e o sol lavando o outro lado da baía e as caminhadas e os canteiros e toda a chuva afogando sem distinção os becos e as avenidas da cidade onde habitava desamparado e heróico dentro do meu medo e da minha incompreensão eu não queria mas abrira sem sentir a porta de um poço sem fundo e sem volta.

V

Um tempo depois, contou-me histórias sob este mesmo teto claro, seu corpo dúbio preenchendo a ausência onde agora minha mão esquerda grita. Mostrou-me com dedos longos a pequena mancha escura no centro da testa, e sem que dissesse mais nada eu imediatamente soube que vinha dali a sua força. Mas não tive medo. Aos poucos, eu também conseguiria formar essa pequena mancha para que nos transformássemos em profetas do mesmo apocalipse. Disse-me depois — e nesse dia chovia como agora — que vinha de um mundo paralelo, e traçou com dedos cruzados estranhos signos no espaço que separava sua boca da minha. Falou-me de sua revolta e de seu cérebro e dos cérebros de seus compatriotas: feitos de fios e microtransistores programados e ligados e desligados à vontade de um Poder Central Incógnito. Falou-me de seu corpo humano e de sua mente elaborada pacientemente por cientistas altamente especializados. Falou-me das extensas legiões de robôs em seu mundo árido, e de sua marginalidade: revoltara-se contra o Poder e voluntariamente conseguira desprogramar-se para programar-se outra vez segundo sua própria vontade. Teve alguns companheiros segregados a vales e cavernas insuspeitados naquele mundo de vidro. Pretendiam uma revolta para que todos aos poucos conseguissem condições para desprogramar-se, programando-se segundo suas vontades individuais e segundo um mínimo de exigência do grupo, visando à ordem dentro da desordem absoluta e primitivismo consciente e sobretudo amor de mãos dadas. Todos concordavam. Surgiam novos adeptos. Aos poucos conseguiam programar-se segundo as ordens do Poder apenas nas horas de trabalho, para programarem-se segundo eles próprios nas horas de descanso. Essa dupla vida não os deixava mais desligarem-se, e seus corpos humanos ficaram com as peles marcadas por uma profunda palidez, olheiras esverdeadas surgiam sob os olhos de pupilas imensas, suas mãos tremiam e suas bocas ressecadas libertavam palavras lúcidas e cósmicas: apreendiam o universo e transmitiam-no pelos vales a discípulos espantados e ávidos. As iniciações seguiam um ritual ao mesmo tempo requintado e bárbaro:
curtos-circuitos terríveis carbonizavam os fios, os microtransistores explodiam — e em breve formavam uma seita tão vasta que não mais se preocupavam em programar-se segundo o Poder. Na testa de cada um nasceu uma pequena mancha escura: ampliavam-se dia a dia, reproduzindo-se e imprimindo-se nos demais de tal forma que quase não podiam ser distinguidos uns dos outros. Mesmo assim, eram ainda uma minoria. E foram denunciados, sem que soubessem como nem por quem. O Poder Central Incógnito capturou-os um a um: os que ainda não haviam aderido foram programados para dar caça a qualquer membro da seita. Os insurretos escondiam-se pelos vales e cavernas, mas o mundo de vidro revelava-os em sua transparência e aos poucos iam sendo executados em cadeiras elétricas dispostas no meio da praça principal. Três deles, os líderes, haviam evoluído tanto em sua autoprogramação que conseguiram programar-se de acordo com um mundo paralelo ao seu — o nosso — e transportaram-se para cá, dispondo-se em pontos estratégicos sobre a Terra. Não perdera o contato com os outros dois, mas pouco quis falar sobre eles. Disse apenas que mantinham um constante triálogo para poderem cumprir sua missão: colocavam obscuros e misteriosos avisos em teatros, cinemas, bares, metrôs, farmácias, muros. Esperavam aos poucos reunir uma nova seita que pudesse retornar ao mundo de vidro para destruir o Poder.
Disse-me ainda que o primeiro sinal para os escolhidos seria uma pequena mancha escura nascida no meio da testa, idêntica à sua. E que todos os que conseguissem formar essa marca seriam iniciados e teriam seus cérebros libertados para que pudessem se autoprogramar segundo sua própria mitologia e crença. E que de toda essa legião partiriam profetas para todos os lados e, dentro de um tempo impreciso, os que sobrevivessem e fossem suficientemente fortes para aceitar todas as novas mensagens e proposições — esses teriam uma vida total, e poderiam morrer de amor, se quisessem, ou não morrer.
Calou e sorriu. E calando e sorrindo pouco depois de falar em amor, ganhou uma inesperada doçura: suas palavras deixaram de ser frias, e dispôs sinais estranhos sobre minha fronte, e pela última vez penetramos um no outro através dos dedos e dos raios emitidos pelos dedos e a mesma luz roxa se fez novamente e novamente me senti caminhando em direção à sua túnica branca — mas desta vez meu cérebro estava suficientemente livre para que eu não temesse. E mesmo sabendo que aquele poço não tinha fundo nem volta deixei que suas paredes translúcidas envolvessem meus membros e sua cintilante escuridão repleta de pontos fosforescentes penetrasse e perpetrasse em minha carne e em minha mente a semente plantada daquilo que eu não suspeitava e que cresceria escondida em suas folhas verdes até que uma chuva inesperada e terrível afogasse a cidade em suas águas e fizesse essa semente explodir numa manhã sem sol em que com a mão esquerda eu acariciaria a ausência do que me trouxe para esta fronteira e com a mão direita conduziria um cigarro até meus lábios secos sob um teto de madeiras claras e a semente banhada pela chuva tropical explodisse dentro de mim em galhos verdes e pequenas sementes e ramagens e folhas até que dessa árvore nascesse um fruto miúdo e escuro: um miúdo fruto escuro na parte superior da árvore confirmaria minha escolha e minha desgraça.

VI

Percebi que voltava quando meus dedos contraíram-se em contato com a brasa do cigarro. O verde se desfez aos poucos, abandonando o externo para se avolumar dentro de mim. Os ouvidos se abriram novamente para a chuva cessando sobre os telhados de zinco e os olhos divisaram aos poucos as madeiras muito claras do teto. Desdobrei os olhos pelos cantos do quarto, mas os sinais concretos de sua passagem tinham desaparecido. Pensei em procurá-los, mas imediatamente soube da inutilidade da procura, e percebi que ele havia tomado diversas formas para chegar até mim, das mais cotidianas às mais insólitas.
Saí da janela e, enquanto um sol rompia devagar as nuvens do outro lado da baía, curvei-me para o cheiro limpo da terra molhada, o verde renascido de todas as plantas. Então compreendi todos os avisos e os estranhos acontecimentos e os inexplicáveis encontros e desencontros e o processo de seleção e aquelas pessoas pálidas de pupilas enormes encontradas pelas esquinas antes dele, e ele próprio. Observei o que antes chamara de ausência sobre a cama, e percebi que meu corpo ainda humano sentia na carne a falta das descargas elétricas de seus dedos, mas que em meu cérebro estranhos circuitos geravam suas próprias imagens e sua memória e sua mitologia e que eu dispunha de mim como se fosse meu próprio dono e que se meu corpo ainda humano sofria fomes e ausências esse cérebro guardava todas as coisas não mais como um álbum de retratos mas como partes integrantes e integradas de mim mesmo. Não sentia mais sua ausência porque eu também era ausência. Não me sentia sozinho nem desorientado porque sabia que se não era ao mesmo tempo todas as outras pessoas e todas as coisas havia pelo menos alguns que haviam sido também escolhidos e que nos encontraríamos e que talvez já nos tivéssemos encontrado e que nosso caminho a princípio escuro era o mesmo. Soube para sempre que ele não voltaria. E que não tinha me abandonado.
Na frente do espelho, toquei meu tronco nodoso e forte e estendi meus galhos em direção às janelas e a chuva cessou e o sol acabou de romper as nuvens espalhado nítido em raios sobre o verde intenso de meu corpo. Então qualquer coisa como dedos delicados tocou suave e firmemente um pequeno fruto escuro recém-nascido no centro de minha testa. A marca.

Meio silêncio.



É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e suspiro,
de palavra indireta, aviso na esquina.
Tempo de cinco sentidos num só.
(Carlos Drummond de Andrade)

Águas de vidro à luz doentia da madrugada. Um vidro verde e fino refletindo longe o tremor das luzes da cidade. Aproxima lento o próprio dedo da ponta acesa do cigarro até senti-lo retrair-se num afastamento involuntário. O rosto do outro também parece feito de vidro. Um vidro ainda mais frágil que o da madrugada. Tem a impressão que se sair caminhando o ar irá quebrar-se em ruídos e estilhaços. A lua está tão bonita que dói por dentro, fala. Depois retrai-se como o dedo não queimado. Sempre o medo de chegar perto demais, de não poder voltar atrás, pensa, e solta devagar a fumaça pelas narinas.
"Quer ouvir música? meus dedos avançam até o rádio. Um gesto e três palavras para encher o silêncio. Que de tão repleto não cabe em si mesmo. Mas ele diz não. Sua resposta me enche de uma brusca vergonha. Como se tivesse descido mais fundo do que eu, dispensando as facilidades que também são fuga. A luz da lua bate nas pedras, elas brilham feito mil luas brancas, mil luas ásperas, mil luas à beira de um céu-rio sem estrelas. Está tudo quieto - há quanto tempo? - e meus ouvidos já não descosturam do silêncio o rumor dos carros passando distantes na estrada."
Olham-se, mas não se vêem. A escuridão não é uma parede, mas o silêncio os imobiliza na busca da palavra maior. Os dois fumam. As pontas acesas desvendam o escuro, e por instantes colocam um brilho avermelhado nas pupilas de ambos.
Perguntou se eu queria ouvir música. Não, eu disse sem pensar. Então ele calou como se tivesse ficado ofendido por eu recusar alguma coisa sua. Desconhecidos: como isso é, a um só tempo, terrivelmente bom e terrivelmente assustador. Pensar que eu estava só, no bar, esperando nem sei que, nem sei sequer se esperando: de repente os olhos me buscando no balcão em frente. Verdes. No primeiro momento foi a única coisa que percebi. Verdes, os olhos, atrás da fumaça, no meio das gentes, na frente do espelho. E o espelho refletindo o meu espanto. Depois vi os cabelos, a boca, os ombros. Mas era nos olhos, só nos olhos, que se fixava aquele mudo apelo, aquele grito. Nem sei. Aquela clara maldição. Saí, saiu. Não dissemos nada. Eu só tenho esperas. Ele traz a tranqüilidade de mais nada esperar.
"Um menino. Aquele ar espantado. Um pouco trêmulo. Cigarro atrás de cigarro. Tenho medo de tocá-lo. De quebrá-lo."
Eu disse: a lua está tão bonita que dói por dentro. Ele não entendeu. É tudo tão bonito que me dói e me pesa. Fico pensando que nunca mais vai se repetir, é só uma vez, a única, e vai me magoar sempre. Não sei, não quero pensar. Neste espaço branco de madrugada e lua cheia, preciso falar, e mais do que falar, preciso dizer. Mas as palavras não dizem tudo, não dizem nada. O momento me esmaga por dentro. O espanto esbarra em paredes pedindo exteriorização.
Você vê? as pedras parecem luas também. Ou estrelas, ele diz. Chão de estrelas. Vamos pisar nos astros distraídos? Ele ri. Nesse segundo cheio de riso alguma coisa se adensa. Nossos pés pisam em pedras. Mas por cima dos sapatos, sinto que são frias e duras, e sei que seu significado está em nós, não nelas. Uma vontade que a manhã não venha nunca. Vai voltar a grande busca. As noites vazias. Amargura de estar esperando. Repetir mil vezes: não quero esperar. E a certeza de que esse não querer já traz implícitas as longas caminhadas, o olhar devassando os bares, a náusea, os olhares alheios, a procura, a procura: seus ombros largos, um jeito de quem pisa mesmo em luas, não em pedras.
As sombras se projetam alongadas na praia deserta. Rumor de carros e faróis que devassam a noite sem achar. Pára de súbito, o corpo ferido por um sentimento indefinível. Precisa falar, precisa dizer.
Afinal, não foi para enfiar pérolas que você me trouxe aqui: eu digo. Ele está a meu lado. Então me olha sério, por um instante abalado, depois ri e diz: desista.
Positivamente o cinismo não fica bem em você. E se com essa citação só quer mostrar que já leu Sartre, eu também já li. Por que feri? Por que feriu? Por que estamos dizendo coisas que não sentimos nem queremos?
"Um menino assustado querendo mascarar o medo com a agressividade. Um menino. Curvo-me para ele. Tão esguio que meus braços o rodeariam por completo. Por um instante ele ficaria inteiro preso dentro dos meus limites."
O rosto dele próximo do meu. Mais adivinho do que vejo o verde dos olhos deslizando pelas órbitas. A sua mão toca no meu ombro, sobe pelo pescoço, me alcança a face, brinca com a orelha, alcança os cabelos. O seu corpo cola-se ao meu. A sua boca vem baixando devagar, vencendo barreiras, colando-se à minha, de leve, tão de leve que receio um movimento, um suspiro, um gesto, mesmo um pensamento. Estou em branco como a noite. Ele me abraça. Ele está perto.
Ergue o braço lentamente, afunda as mãos nos cabelos de outro. E de súbito um vento mais frio os faz encolherem-se juntos, unidos no mesmo abraço, na mesma espera desfeita, no mesmo medo. Na mesma margem.

Triângulo amoroso: Variações sobre o tema.


Para Maria da Graça Magliani

Era uma menina. Embora não quisesse, quase desvairada na negação indireta, recusando atitudes e palavras que, justamente por afastadas, sublinhavam a sua condição. Aos olhos dos parentes, alheios a seu profundo - mais profundo ainda talvez porque inconsciente, resultante quem sabe de alguma remota frustração, como ia dizendo, seu profundo ressentimento tomava forma como em todas as meninas: algo meio vago, quase informe, acentuado vezenquando por lacinhos e babadinhos, como se as frescuras no vestir pudessem compensar o que lhe faltava: a forma. Ah como recusavam a sua densidade, como supunham ultrapassá-la quando, na verdade, sequer chegavam à sua periferia. Principalmente: como erravam ao tentar acertar, suas;atitudes de curva até o centrozinho dela (que eles ignoravam todo áspero e espinhento) fazendo-se queda lenta, desequilibrada, mesmo grotesca -irremediável queda. Ela era, pois, o ser mais só daquela casa. Isso equivale a dizer que era também o mais só do mundo, já que seu ambiente limitava-se àqueles dois pais e àqueles quatro irmãos equilibrados precários em pares de longuíssimas pernas, que serviam para lançar no rosto da menina a sua pequenez. Ah como eles eram herméticos. Mesmo amigos com quem trocasse desditas, amigos miúdo-gigantescos como ela, não os tinha. Vivia num apartamento desses enganchados em edifícios cinzentos, tão vazio de cores quanto de crianças. Além disso, ainda não havia apreendido o grande desencontro das palavras -portanto não poderia comunicar-se de maneira adulta, posto que a maneira-adulta-de-comunicar-se trata-se de um constante dizer o que não se quer, pedir o que se tem e dar o que não se possui. Também nos gestos, ela ainda não conseguira precisar-se, adquirindo aquela dureza que não assusta aos outros. Toda inexperiente de membros, ela enrolava-se em braços e pernas, enredada em movimentos que absolutamente descontrolava. Subjetiva e objetivamente, a menina era tremendamente solitária.

Foi quando apareceu o gato. A natureza dos gatos é parecida com a das meninas: também eles possuem aquela ferocidade mansa, toda contida e dissimulada ao pedir leite roçando as costas contra as pernas das pessoas. A menina só era amorosa quando faminta, fazendo-se lânguida, quase erótica. Saciada, tanto se lhe dava estar com aquela família alta e magra ou outra, baixa e gorda. Como ponto de contato, havia ainda aquela lucidez desesperada, portal de loucura, nas noites de lua cheia. Ela chorava, ele miava. Incompreensão da própria angústia, uniam-se no ultrapassar de seus limites, iam além, muito além, completamente sós dentro do apartamento - quem sabe do universo -, ela gritava, luzes acendiam, gestos precisos acariciavam lugares imprecisos; ele miava carente de carícias, de tentativas de compreensão, incompreendido, incompreensível. O berro uníssono fazia as paredes incharem, prenhes.
Os olhos castanhos dela encontraram os olhos verdes dele numa manhã de chuva. Todo sujo de lama, ele fora encolher-se exatamente em frente à porta onde havia uma espera em branco. Comunicaram-se. Ela não tinha palavras. Ele tinha unhas afiadas. Ela tinha dentes nascendo, sua arma em gestação contra o mundo. Ah como se amaram violentos e ternos em unhadas de paixão, dentadas de lascívia, mão sobre o pêlo amarelo, cabeças unidas -ele estacionado em evolução no ponto onde ela estava, mas ultrapassaria. Desde o início, ela fora em potencial maior do que ele. Tinha perspectivas, ao passo que ele estava para sempre confinado às quatro patas, ao rabo, às duas orelhas, aos seis ou oito fios de bigode.
Mas inconscientes desse desencontro, doavam-se inteiros, ignorados, ignorantes - brutais e absolutos em sua posse calada.
Até que chegou a gata. Os pais tiveram o raciocínio lógico de que um gato, mais que qualquer coisa no mundo, precisa de uma gata. E a trouxeram. Ela insinuou-se fêmea, gata de loja de animais, guizos, laçarotes, miando esquiva roçava o corpo contra as paredes, delicadíssima no arquear do dorso, formando uma curva tão sutilmente prometedora que a menina se espantava toda de tanto cinismo caramelado. E começou a disputa. Desde o início, a menina estava derrotada - ah como os parentes não a compreendiam. Ela -indefinida, meio tosca -insabia que para conquistar era necessário ser dissimulada como a gata. Ela era completamente objetiva nos seus desejos: se queria agarrar o gato, não se perdia em tramas e atitudes –ia lá e agarrava a meta. Que se esquivava, agora, mais propenso às ternuras menos ostensivas da gata.
Findo o período de namoro, o cio chegou e a gata e o gato possuíam-se despudorados pelos cantos, a menina incompreendendo que ela mesma não era uma gata, e que só poderia, assim mesmo futuramente, e talvez, possuir naturezas como a sua. O problema é que ela nunca tinha visto um menino. Sua única oportunidade de amar fora o gato. Que se tornara absoluto como jamais pirulito ou boneca haviam sido.
Mais só ainda - ela chegou então à atitude extrema. Talvez por influência da gata, aprendeu a dissimular, e aproximou-se toda meiga do gato que tomava leite. Foi tudo premeditado, ou tão espontâneo que a preparação estava implícita. E apertou. De uma só vez. Mais com a força que teria, propriamente, do que com a que dispunha no momento. Ele não miou nem estrebuchou.
Apenas morreu. Sem adjetivos.
Ela ficou olhando o corpo mole, desafiando-se com a gata que farejava o companheiro. Havia uma réstia de sol sobre o tapete. A menina encaminhou-se para lá e começou a brincar com uns cubos coloridos. Não descobriram o autor do crime. Ela não chorou. No mesmo dia, disse a primeira palavra: ato. Depois começou a crescer crescer crescer. Até que casou, teve três filhos, comprou um automóvel, um apartamento de cobertura no Guarujá e uma casa em Poços de Caldas.